sexta-feira, 26 de abril de 2013

O trabalho de Jacques Lecoq por Lúcia Romano

"Lecoq conheceu o trabalho de Decroux e teve contato com fontes semelhantes às dele, no período de trabalho na Itália e nos anos de aprendizado e criação na França. Investigando o mesmo universo que o mestre da mímica corpórea, no que diz respeito à geração no palco da presença (o aqui/agora material) do corpo do ator, por meio do emprego de signos não convencionais, Lecoq colaborou para a expansão das fronteiras da mímica. John Daniel ressalta que isso ocorre também porque seu método enfatiza a inspiração nascida do contexto social, ao invés da busca pela perfeição do movimento apenas no treino solitário do artista.

A superação dos limites da mímica, em favor do livre emprego da imaginação e da expressividade do ator, propostas por Lecoq, foi relevante não só para a mímica, mas principalmente para o teatro. De acordo com o mestre, o que caracteriza a mímica e melhor exprime suas potencialidades comunicativas e artísticas não é a ausência de textos falados, mas a geração de um corpo expressivo que emprega o visual e o sonoro, numa revalorização do silêncio e do som: o visual é meio e não fim para o estabelecimento da presença expressiva do ator.

Também as máscaras, tanto nas tragédias e comédias gregas como na comédia italiana, auxiliam essa presença, porque implicam na reestruturação da exprssão do som e do corpo. "Não há conflito entre a palavra e o silêncio; o silêncio dá à palavra sua profundidade. Um discurso que ignorasse a qualidade do silêncio não passaria de verborragia".

No ensino da École Jacques Lecoq, muitas premissas do Teatro Físico estão presentes: são exemplares a estilização como recurso natural da linguagem do movimento e da cena; o emprego da improvisação; o resgate de formas populares como o melodrama e o clown; o emprego da mímica (com ou sem o acompanhamento do texto falado); a contraposição do estilo do bufão à personagem psicológica; a fusão de estilos; a ênfase no processo de criação e a aposta no processo colaborativo - desde 1968, os alunos praticam autocours, quando novamente trabalham as improvisações feitas em aula e desenvolvem em conjunto os aspectos técnicos e artísticos da performance.

O fundamental, entretanto, está na ampliação da função do ator, convertido em criador do espetáculo e não apenas intérprete de um papel: quando a autoria da obra é democratizada, o ator-intérprete é substituído pelo ator-criador, um ator consciente de suas ferramentas expressivas, treinado na linguagem do teatro corporal e maduro para capitanear o processo criativo. O corpo do ator-criador, recriando-se na relação com o espaço, espelha as estruturas do drama, a construção arquitetônica do fenômeno teatral que ele faz efetivar.

A influência de Lecoq é marcante não pela determinação de um modelo de espetáculo, mas na intenção criativa que impulsiona os espetáculos e dá unidade à diversidade de resultados do Teatro Físico. Os grupos assemelham-se na eleição de um processo criativo que reiventa as formas teatrais por meio da exploração do repertório expressivo do ator, nos seus aspectos gestual e vocal. Assim, cada artista ali formado pôde explorar a mímica e o teatro, em direção a um terreno que mistura as duas linguagens, oferecendo sua própria versão dos princípios de Lecoq."



Lúcia Romano
Extraído, e um pouco reduzido, de "O Teatro do Corpo Manifesto: Teatro Físico", Editora Perspectiva/2008.

Um comentário:


  1. Sempre que eu assisto um ator/clown percebo o diferencial de repertório de movimentos, que pode ser bem explorado pelo diretor do espetáculo.

    "seu método enfatiza a inspiração nascida do contexto social, ao invés da busca pela perfeição do movimento apenas no treino solitário do artista."

    Esse trecho extraído artigo acima ficou um pouco nebuloso pra mim e parece ser um ponto importante. Rita qual é a sua compreensão dele?

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